sábado

memórias II (Proust style)


Outro dia estava servindo café em um hotel, repetindo o mesmo movimento de pegar a chícara, botar embaixo do bule, apertar o botão, encher a xícara e entregar pralgum inglês qualquer; quando me veio a memória perfeita de como era fazer café na minha quitinete em Brasília: pegar a chaleira (que estava no fogão) encher de água, botar no fogão, riscar o fósforo, acender a boca maior, esvaziar a garrafa térmica, colocar a forma com o filtro (de nailon), dessatarrachar a tampa do pote de café, servir duas colheres grandes no filtro, pegar a água e passar pelo filtro, usando a água fervendo que sobrou pra limpar a pia.
Foi um flash mnemônico muito atípico porque foi a lembrança mecânica do processo, lembrei da sensação muscular de fazer tudo isso, com um pouco das imagens do processo junto (em primeira pessoa), tipo a cor alaranjada da minha garrafa térmica, o branco da chaleira, as manchas na minha pia, o filtro de nailon quase rasgando, a tensão da tampa do pote de café, do pote de açúcar.
Quando saí desse transe as coisas voltaram a ficar embassadas. Não conseguia mais ter certeza de quais eram as situações mais comuns nas quais eu fazia café. Era quando eu recebia alguém em casa? Era quando eu chegava do trabalho e comprava uns pães-de-queijo? Era de noite pra continuar estudando, ou jogando videogame?
Talvez um dos mecanismos de prevenção dessa generalização das memórias sejam os outros. Não me lembro de ter passado por uma pasteurização das minhas lembranças tão rapidamente antes, provavelmente porque quando se tem as pessoas que fizeram parte desses tempos, não só se fala (e lembra) mais dos eventos específicos, como o mero contato com eles ativam essas memórias, amortecendo nossa queda no vazio do esquecimento.

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