terça-feira

da inteligência .1

Ainda assim o termo persiste, Inteligência, como se fosse uma coisa, uma substância, um pedaço do cérebro (ou quem sabe pior ainda, da alma). Alguns tentam ainda ingenuamente postular que Inteligência seria uma soma de diversas coisas, ou pior ainda, mais do que a soma de diversas coisas (a surrada gestalt, palavra adorada na psicologia) como se isso quisesse dizer alguma coisa. Na falta de uma explicação, é melhor mesmo usar um termo em lingua extrangeira, como uma palavra mágica que conjurasse algum sentido.
Uma maneira mais elaborada (mas não menos tola) de se agarrar à palavra é invoca-la como malabarismos estatísticos sobre testes psicológicos. Uma das grandes decepções de quem estuda psicologia é sem dúvida ver a falta de concenso e o ceticismo que assola a psicometria. Aliás, a psicologia como um todo é de uma palidez comparada com o que o imaginário popular fantasia: não, não existem testes que dizem exatamente como você é; não existem técnicas soviéticas de lavagem cerebral; não existem mensagens subliminares (que funcionem); diagnosticar psicopatologias é um sofrimento; e por último e mais importante -ninguém sabe como funciona a cura psicoterápica.

da inteligência

A capacidade de alcançar um objetivo (desejado, programado, previsto) de uma variedade de maneiras, ou em várias condições diferentes.
O grande problema da definição é que ela é necessariamente falha quando tenta ser geral. Não existe "inteligência geral", porque não existem problemas (ou objetivos, ou desejos) gerais. A capacidade de estabelecer (ou reconhecer) um objetivo e ser capaz de perceber se ele foi alcançado ou não é a base da inteligência, mas isso em si nada mais é do que a mesma coisa que o termostato da sua geladeira faz (se a temperatura estiver acima de x ligue o refrigerador, se estiver abaixo de y desligue). É por isso que o que se chama de inteligência tem a ver com a capacidade de variar os meios pelos quais se alcançam certos objetivos, ou a capacidade de alcança-los em vários meios diferentes.
A noção de objetivo fica central a qualquer análise de inteligência, sem essa visão teleológica fica impossível "julgar", comparar ou identificar inteligência. Comparações nesse sentido podem ser entendidas como a diferença entre a eficácia e eficiência entre sistemas inteligentes.
A inteligência vira refém da intenção, e desde o século xix a intenção não é vista diretamente, mas sempre no entendimento de seu caráter derivado, turvo e dissimulado. Esse problema tem uma pseudo-resolução na perspectiva darwinista, que oferece uma fundação distante do que poderia ser um "piso existencial", mas é demasiada vaga para o uso pontual em sistemas derivados (ou seja, quase tudo fora da biologia hardcore).
Derivado do direito, uma possível forma de contornar as complicações de atribuição de intenção talvez seja apelar pro princípio da responsabilização do sistema beneficiado pelo resultados da ação (cui bono), à despeito do que se pense sobre o agente. Mesmo assim, ferramentas analíticas forjadas em proximidade conceitual ao fenômeno específico são necessárias, afinal, não se abandona a idéia de inteligência geral só para se agarrar a uma forma de entendimento geral de inteligências pontuais.

domingo

livros iv

Não me entenda mau, não sou simples filisteu ou ingênuo crente na ciência (como esses fascinantes new ateus dawkinianos -como se alguém precisasse de darwinismo pra desacreditar em deus), mas entre os anjos e os macacos eu não tenho dúvidas beibe, passe a banana.
De volta à literatura. Uma vez livre da ingenuidade de que o conteúdo ou tema do livro pode ser facilmente julgado (porque existem as infinitas possibilidades hermeneuticas, existe uma desprivilegiação de sentidos certeiros ou únicos, existe uma dependência de conhecimentos prévios pra se encaixar os significados, blablabla), fica-se com um critério bem simples pra se escolher o que ler: se o texto quer ser lido.
Lógico, isso não deve necessariamente levar para a estrutura cretina do best seller anglófono que sempre rápido, abusa das encruzilhadas xerazade, feito à imagem e semelhança da televisão. O que eu quero dizer é a escrita clara com um formato útil ao conteúdo. Não consigo não lembrar das frases secas de Nelson Rodrigues, que quando não emulam quase perfeitamente a fala natural das pessoas, dão ao próprio narrador uma impressão tão desinteressada que o leitor ingênuo pensa que o autor era um liberal.


Eu juro que estava bolando todo um jeito elaborado de criticar as redundâncias formalísticas da literatura moderna, opor alternativas intelectuais carregadas que mantém a simplicidade, de Humberto Eco até Borges, o quanto o livro de divulgação científica é como que um primo pobre dessas propostas -botando o conteúdo em primeiro lugar e o estilo como uma ferramenta pedagógica pra passar a mensagem de forma mais eficiente, e enfim ligar tudo isso a decadência política da tradição de crítica do status que tradicionalmente pertenceu à esquerda. Então, quem sabe outro dia, porque eu encontrei no youtube a melhor coisa já passada na tv brasileira. Malu, Gabriela, Debora, Maitê, we love you.

livros iii

Mas a decisão de limar parte da literatura do meu cardápio foi consciente. Durante algumas semanas eu estive com uma cópia do em busca do tempo perdido do Proust. Eu tentei ler o livro algumas vezes, consciente da importancia literária da obra e tal. Mas que porra chata.
Um dos obstáculos ao meu engradecimento cultural era um tijolo de contos do Rubem Fonseca que ficava sempre perto do livro do Proust, me olhando com uma cara sacana que dizia: além de falar sobre coisas mais interessantes, eu fui escrito por alguém que queria ser lido, e não como um experimento fenomenológico impressionista versando sobre o banal. O resultado provavelmente desagradaria o próprio Rubem Fonseca, que desgraçadamente culto como é, deve gostar muito mais de Proust do que das próprias coisas que escreve. Mas eu discordo. Obina é melhor que Eto´o pra esse caso também.
Esse é um exemplo covarde, já que o conteúdo de um é imensamente mais cativante do que o do outro, mas a base da decisão é uma questão de forma. O fluxo de consciência mnemônica proustiano não é pra qualquer um, um derivado intelectual de um ramo da intelectualidade continental que me desagrada profundamente -a fenomenologia husserliana- que vai acabar dando margem pra heidegger, lacan e outras desnecessidades pseudo-intelectuais que os pouco inteligentes ou desonestos gostam até hoje em dia.
Beleza, talvez pouco inteligentes seja um tanto forte, mas o que falar de uma tentativa de obscurecer o discurso ao invez de debater claramente idéias? Nada contra essa estratégia discursiva ser usada em contextos típicos, como na fala religiosa, mística ou totalitária (ou na conquista, no xavéco, no golpe), mas quando a proposta é discutir o universo a vida e tudo o mais, fica bem pouco diferente de charlatanismo ou burrice.

sexta-feira

os outros 9

Andrelanya quis mudar o visual, mas só se maquiou. Quis ter uma noite diferente mas foi pro bar de sempre. Quis viver loucuras, mas só deu dois tragos no baseado de um playboy. Quis encontrar o homem da sua vida, mas só conseguiu fingir que não queria ir no motel (mas quase teve que arrastar o coitado do menino). Quis ter uma trepada inesquecível, mas teve o de sempre. Beleza, agora ela queria pelo menos sentir uma porra de um orgasmo -mas acabou sentindo mesmo foi o gosto da batatinha frita do motel. Estava boa pra caralho.

quarta-feira

livros ii

As Viagens de Gulliver deveria ser mais importante do que é hoje. Melhor ainda, deveria ter sido mais importante desde sua publicação até hoje. É dificil evitar dar uma de Pierre Menard, mas é surreal o quanto o texto adianta questões antropológicas e políticas (as primeiras ingenuamente, as segundas bem intencionais) que só seriam resolvidas 300 anos depois, ou nem isso. Swift é melhor que Malinowski é só o que eu tenho a dizer. Swift é melhor do que Sapir-Whorf. E por último e mais glorioso ainda, Swift é melhor do que relativismo cultural e a guerra ao terror juntos.
Talvez seja esse o problema desse texto, o quanto a ironia (e a auto-ironia) só sejam realmente apreciados em uma leitura pós-moderna. Morra de inveja Nietzsche, esse é um cara que realmente nasceu póstumo.
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E Conrad? Ora, Conrad é foda. No melhor exemplo do que a Inglaterra é hoje, o maior escritor vitoriano (em inglês) tinha que ser um polonês. Dizem as más linguas que inclusive tinha um sotaque indecifrável, afinal, aprendeu inglês como a terceira lingua -e deve ter aprendido à bordo, que nada mais era do que a garçonagem da época.
Conrad faz um truque barato de te dar a impressão de que o mar revela o caráter das pessoas, de que a fibra do que somos feitos só se revela sobre a tensão de um barco. Mas é mentira. É Conrad o tempo todo. Pense num Melville sem o cristianismo, sem a culpa de não ter sucesso e dinheiro, sem ser americano. Conrad vê o absurdo e segue seu rumo, ele não é uma afronta metafísica ao divino, ele só é. Como o mar. Existe um pragmatismo náutico que deixa claro que ele não viajou muito a bordo de um navio, ele fez isso e capitaneou também.
Lorde Jim, Tufão e Falk. Depois, se quiser relaxar assista de novo Apokalipse Now, mas tenha em mente que o Coração das Trevas é bem diferente, diferente no sentido de ter mulheres importantes. Não recomendo ler no original, os termos náuticos são abundantes e obscuros.

livros

As vezes sinto culpa de um vício meu. Tenho o péssimo hábito de ler livros de ciência popular. Como todo vício, esse comportamento não é seletivo, qualquer coisa serve. Terminei hoje um livro sobre a geologia dos supercontinentes. Outro dia foi um de economia financeira. Antes disso um sobre física estatística. Sou um monstro. Eu não presto.
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Toda vez que eu passo em frente a uma livraria ou biblioteca esse instinto aflora. Aqui em Londres ele piorou muito, porque os livros são ridiculamente baratos e existem várias bibliotecas decentes perto da minha casa -todos cheios desses papelotes branquinhos.
Pra piorar, os amigos letrados e as minhas fontes acadêmicas estão do outro lado do atlântico, o que corta a pressão social pra ler outra coisa. Não tem nada nem ninguém pra me lembrar que eu não li crime e castigo ou guerra e paz, que eu nunca terminei de ler a interpretação dos sonhos, ninguém pra tentar me empurrar algum pós-moderno.
A verdade é que eu sempre li qualquer coisa que chegasse a minhas mãos. Tenho amplos conhecimentos místicos/astrológicos/picaretagens new-age-good-vibrations graças a essa falta de critérios, já li mapa astral de menininhas que desataram a chorar com minhas interpretações (mas também coitada, tinha a lua em touro), sei divagar sobre a chama violeta ou i-ching, obviamente passando por extraterrestres: era só isso que tinha pra ler na minha casa quando eu era criança.
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A academia só adicionou critérios novos, tipo esse hábito cretino de começar a ler o livro pelo final, de ser capaz de julgar qualquer coisa escrita pelas referências sem ter que ler uma linha do coitado do autor (que obviamente não escreveu nada de novo). É o entendimento profundo da falta de entendimento dos outros. Pelo menos, soa bem melhor que preconceito.
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Mas a minha fonte verdadeira de angústia é ler poucos livros de verdade, romance mesmo. Esses eu também lia o que quer que me caísse nas mãos, mas hoje quase nada me aparece assim, como o Zé me empurrando algum autor obscuro do naturalismo brasileiro do século xix, ou o Pedro me obrigando a ler Graham Green, ou o Gabriel me socratizando um Marques de Sade. Pra todos os efeitos, leio menos do que no segundo grau, quando pelo menos o Grilo me passava Pedro Juan Gutierrez e coisas do gênero. Hoje sou eu e meu vício.
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Outro dia entre a janela de trabalhar em escola e o telemarketing, me peguei sem nenhum livro pra passar o tempo (que seria algo do tipo a história da tradução da pedra de rosetta, ou introdução ilustrada à lógica). Passei perto da estação de waterloo, onde tem uma livraria mais ridiculamente barata ainda. Bravamente fui na seção de livros (de verdade, romance) e peguei logo três papelotes (por gloriosos £4,99), Gulliver, um de contos do Conrad e uns cliches do Mark Twain. Não confio em traduções inglesas, tradução por tradução leio em português.