quinta-feira

voi ch'intrate: caixa preta

Antes de mais nada, é necessário se livrar da idéia de que é preciso entender como as coisas funcionam pra fazê-las funcionar. Você nem suspeita dos detalhes de como a eletricidade flui entre os transistores do seu computador, mas isso não te impede de usá-lo. Ou de como seu cérebro decodifica essas luzes na sua frente que você lê sem esforço. Certas atividades são tão notoriamente difíceis de entender que geralmente performa-las é mais fácil do que tentar explicar, como andar de bicicleta, ou desenhar.
Tudo bem então, explicar certas coisas é dificil, e daí? Qual o problema em tentar entender, mesmo que as explicações sejam meio problemáticas a princípio?
O problema das "explicações" precoces é que quando se trata de explicar uma prática, elas geralmente vêm acompanhadas não só de descrições do coisa, como também de prescrições. O melhor exemplo são as gramáticas que usam na escola. Além de não explicar como a língua funciona, prescrevem uma série de regras que não fazem nenhum sentido na maior parte dos contextos de uso natural da língua.
Na psicoterapia é necessário estar sempre atento para a influência que as idéias do terapêuta exercem nos vários aspectos do trabalho. E elas são onipresentes. É preciso sempre lembrar que, apesar das concepções teóricas serem o que possibilita a existência da psicoterapia, elas devem sempre estar submetidas à demanda do paciente.

quarta-feira

voi ch'intrate


Nada disso aqui vai fazer sentido da primeira vez, e provavelmente nem na segunda. Quem sabe o leitor precise de um pouco de literatura em psicoterapia também, especificamente psicanálise, sistêmica e quem sabe um pouco de Rogers. Filmes americanos sobre terapia/psicologia vão mais atrapalhar do que ajudar, fique longe desses. E já que estamos falando em ficar longe de, não leve muito a sério os livros de psicoterapia também.
De preferência tenha um pouco de experiência clínica, embora isso não seja essencial de modo algum. Quando alguém escreve que o leitor precisa ter experiência em alguma coisa (ou vivência, ou ter sentido na pele, ou ter estado lá pra ver com os próprios olhos, etc), o que ele quer dizer é que ele não é articulado o suficiente pra explicar o que quer que seja que ele queira explicar, ou que o leitor não é inteligente o suficiente pra entender. Dito isso, talvez eu não seja articulado o suficiente pra me fazer entender. De todo modo o leitor pode se confortar com a garantia de que as idéias que serão expostas aqui não tem como ser vistas em qualquer outro lugar, o que quem sabe compense a dificuldade de entender.
Outro jeito de jogar a culpa do texto ilegível no leitor é exigir mais leitura prévia ainda, de preferência sobre assuntos completamente desconexos que ninguém nunca lê juntos. Como essa estratégia memética é boa demais para ser desperdiçada, leia também Foulcault, Marx, Wittgenstein, aprenda java script, leia sobre a parte mais chata e cretina da gerativa, Lakoff, Ginzburg, Reich, Simmel, Moscovici, Nietzsche, Taleb, Eco e não leia o Dennet -porque se ele entendesse de clínica ele provavelmente já teria tido essas idéias. Melhor ainda, não leia nada disso (menos ainda esse vazio aqui), clique aqui e fique de boa.
Não existem fatos morais, existem interpretações morais dos fatos. Sem entender essa pequena pérola do Crepúsculo do Bigodão, não existe esperança de entender nada sobre o ser humano.

Povão

Fhc é um zumbi político. Já desde 2003, quiçá antes. Se não fosse pelo PIG, nem as enfermeiras do asilo lhe dariam ouvidos. Completamente irrelevante pra realidade política atual, o príncipe dos sociologos amarga hoje em dia o fato de que os vencedores é que escrevem a história. Qualquer que tenham sido seus méritos como presidente por oito anos, não é negocio pra ninguém relembra-los em bom tom.

O PT, que sempre antagonizou ferozmente todo governo que não do próprio PT, não tem dificuldade em repetir a mesma história anti-privatização, que não fazia sentido na época, e menos ainda hoje em dia quando os resultados são óbvios pra qualquer um com celular. O mesmo pros partidécos de esquerda.

E a "direita" tambem nunca foi grande fã do morto-vivo. Não sei exatamente por que motivo, se por alguma ação de governo como a Lei de Responsabilidade Fiscal (que diminuiu um pouco o poder dos coronéis e a loucura administrativa do executivo), ou só uma saudável suspeita de que o culto à personalidade acabaria convencendo o próprio adorado a não sair mais da política. Se os colegas do PMDB maranhense tivessem a ambição que Serra, Alkmin e o resto dos tucanos paulistas tem, quem sabe o Brasil não tivesse na sua quinta ou sexta década de ser parasitado pelo Sarney.

Eis que então fhc decide que não é suficiente ser só irrelevante, é necessario justificar intelectualmente o porquê de ninguém prestar atenção no que ele pensa. Escreve uma longa e maçante pseudo-análise da realidade política do Brasil. Alguns atribuem ao texto um academicismo impenetrável, como um artigo de sociólogo. Pouco provável, porque a sociologia é um corpo teórico que embasa suas hipóteses de acordo com dados empíricos. Nada disso existe no texto. Evidentemente que prestar atenção em pesquisas, números e fatos não é o forte do ex-presidente.

Considerar esse folhetim como um mapa estratégico para a oposição também é de gosto duvidoso. Em uma das suas brilhantes considerações práticas sobre o que fazer, fhc diz que "Mais ainda: é preciso persistir, repetir a crítica, ao estilo do "beba Coca Cola" dos publicitários." Não so é infantil, raso, ofensivo a inteligência do eleitor, como meramente ecoa o que o PIG vem fazendo sem sucesso desde 2003. E olhe que o principe está falando de como se conquista a parte de educada do Brasil, porque o Povão, esse só deve entender esmola ou chicote.

Uma dica para o ex-presidente: sempre que o senhor se sentir mal quando ouvir alguém repetir que houve compra de votos para a aprovação da re-eleição, ou que o esquema de privatizações foi feito com cartas marcadas para grande prejuízo do contribuinte, lembre-se que seu governo, em especial seu engavetador-geral, é que impediu as investigações que resolveriam o assunto. E convenhamos, chamar sua brilhante descoberta do poder das medidas provisórias de "modo lulista de governar" é de uma modéstia inacreditável.

O miolo do texto é confuso e desconexo, mas não o suficiente para quem entende de onde os memes que fhc reproduz vem. A tara com o raciocínio de redes de Castells; a movimentação "grass-roots" da militância que elegeu Obama; a idéia de que a internet propiciou as inquietações no mundo árabe; e a óbvia noção de que o povo entende a política pelos seus resultados cotidianos, e não por abstrações esdrúxulas sobre ideologias. A originalidade do autor assusta mesmo o mais ardente defensor do príncipe, e sou obrigado a lembrar que quando o PIG (desimpressionantemente) divulgou que fhc era a favor da descriminalizacao das drogas, a Economist tinha manifestado a mesma opinião na mesma época...

A única parte do texto que poderia ser levada a sério como um documento de oposição é um parágrafo que trata das arcanas complicações de política monetária do governo, como juros, dívidas e movimentações financeiras obscuras. O grande problema desses pontos (além da verdadeira dificuldade do leitor de entender o que diabos o príncipe quer dizer) é que o ex-presidente mandou nos oito anos nos quais o Brasil teve os piores juros, dívidas e movimentações financeiras obscuras. Querer passar uma imagem de saneamento econômico usando fhc como garoto propaganda é como tentar usar o ex-presidente lula para promover a educação.

A verdade é que o texto é muito longo e mal escrito. O trecho do Povão é realmente o núcleo desse folhetim, e a repercussão pela internet (porque claro que o PIG não divulgaria essa pérola da velha elite politica) dessas poucas linhas é completamente adequada. O único ajuste que eu faria a esse recorte seria a inclusão de uma frase duas linhas acima, onde o príncipe constata que no Brasil "As oposições se baseiam em partidos não propriamente mobilizadores de massas." Um verdadeiro testemunho à profundidade do intelecto de fhc.

Bônus -minha frase gigante favorita dessa verdadeira flor do lácio, digna de um imortal:

"Antes de especificar estes argumentos, esclareço que a maior complexidade para as oposições se firmarem no quadro atual comparando com o que ocorreu no regime autoritário, e mesmo com o petismo durante meu governo, pois o pt mantinha uma retórica semianticapitalista não diminui a importância de fincar a oposição no terreno político e dos valores, para que não se perca no oportunismo nem perca eficácia e sentido, aumentando o desânimo que leva à inação."

sábado

futurologia

A grande marca da sociedade moderna é a completa dominância da concepção de tempo linear. Isso não é pouca coisa. O abandono da idéia de tempo como um círculo, como um ciclo, como uma espiral, é um desenvolvimento que marca o abandono das mitologias, das maneiras de tentar domestificar o tempo com uma historinha confortavelmente previsível.
As últimas a cairem ainda resistem em bolsões menos racionais, como a escatologia judeo-cristã-maometana, as variações da revolução do proletariado, e as cômicas novas eras (cada vez com uma nova data, um novo profeta, um novo calendário), mas de modo geral o indivíduo educado não gasta muito tempo repetindo essas sandices. Esqueceram de trocar a água da era de aquário nos anos sessenta, malditos hippies preguiçosos.
A aceitação da impossibilidade de se prever o futuro, de entender que a história é complicada demais para aceitar programações ou planejamentos muito elaborados, é um fenômeno da modernidade em pé de igualdade com as grandes lições de humildades do pensamento ocidental. O modelo heliocentrico, o ser humano como nada mais que um tipo de macaco, a idéia de motivação inconsciente (e as hipóteses sexuais freudianas que inauguraram isso), parte do Kitocidenatal moderno. Mais sobre ele outro dia.

BRAS CUBAS CAPÍTULO LXVII / A CASINHA

A casa resgatava-me tudo; o mundo vulgar terminaria à porta; — dali para dentro era o infinito, um mundo eterno, superior, excepcional, nosso, somente nosso, sem leis, sem instituições, sem baronesas, sem olheiros, sem escutas, — um só mundo, um só casal, uma só vida, uma só vontade, uma só afeição, — a unidade moral de todas as coisas pela exclusão das que me eram contrárias.