domingo

munich, (ou "a cozinha é grande demais")

Assisti Munich.
Gostei, esperava alguma coisa muito mais pró-israel do que o filme é. Spielberg é cachorro velho, e esse filme é particularmente escorregadio de perceber alguma intenção clara. Não que esse efeito venha de "uma exposição balanceada dos fatos", porque, convenhamos, não é o caso.
Não existe diálogo no filme, não existe uma voz pro Outro. Até a última cena todas as falas podem ser entendidas como um monólogo oscilante, hora confiantes, ora duvidosas. O único personagem constante no filme é o nazi-judeu, inútil se não visto como exemplo da desumanização que sua opinião mostra.
A história consegue tocar um pouco o ideal que (dizem) existiu nos revolucionários dos anos 1960, onde apenas um dos personagens deixa claro que só trabalha por dinheiro, e não com ideologias ou países. Todos os outros hoje seriam motivo de riso. Mas o filme iguala as falas de todos (incluindo as esperanças do protagonista mossad, que em uma cena critica um palestino por acreditar numa retomada de israel -que nunca existirá porque nunca deu indícios de se realizar, se esquecendo que ele mesmo luta por uma paz que não existe e que nunca existiu). É a mesma voz, não existe antagonismo, não existe diferença, fica-se com uma impressão infantilizante.
Mais interessante que isso é a lenta e nebulosa descoberta da própria alienação a qual estão submetidos os mossads. O protagonista começa com um completo entendimento de que se trata de uma missão que fará justiça ao atentado das olimpíadas (punindo seus arquitetos), para a gradual tomada de consciência do real processo de produção, do dano colateral, das vítimas inocentes, das consequências sistêmicas e das reais intenções do Estado israelense. Numa das melhores falas do filme, o cara (já bem desiludido) pergunta algo como "mas nos estávamos matando para substituir os líderes terroristas ou os líderes palestinos"? Afinal de contas, quando o Hamas era só um bando de árabes se explodindo em Tel Aviv eles não eram nada demais. O problema real é quando eles são eleitos, quando são legitimados pelo voto do povo e pelo mundo (que não eua-israel), em um retrospecto institucional -e por isso bem mais perigoso pra israel- do que foi Arafat.
Esse entendimento de que nada começa agora, tudo tem uma história prévia, é dada a conta-gotas no filme, que os ouvidos atentos percebem nas falas que fazem referência à conturbada criação do Estado israelense (ou você engoliu aquela historinha de que a ONU declarou e o império britânico deu israel porque tava com peninha?).
Caminho inverso do meu episódio favorito de Band of Brothers, (why we fight, parafraseando os filmes de propaganda americana da época, todos disponíveis online -eu vi o russo, que é bom pra cacete) no qual a redenção da invasão americana não veio do entendimento do processo histórico (esse cheio de interesses escusos e injustificáveis), mas sim da acidental "descoberta" dos campos de concentração. Depois de sobreviver a um mar de moralidade cinzenta, foi como se os soldados americanos se deparassem com uma barreira escura, que por contraste os aliviava dos próprios horrores cometidos até então. Os campos de concentração americanos não se comparavam. Caralho, nem os gulags eram tão do mal.
Voltando ao Munich, a ausência de uma voz americana é ensurdecedora do ponto de vista zionista. O protagonista, apesar de arriscar tudo que tem por israel, toma sem dó a atitude de ir morar nos eua. Diante da cada vez mais clara desilusão com um país -não mais uma terra prometida- em guerra, ambíguo em sua moralidade e já sem quase nenhum dos bons traços judaicos, só lhe resta desistir. O filme poderia, porque tinha espaço pra isso, ter tocado no ponto forte da questão fascista da própria existência do Estado judaico: quão diferente da alemanha ou japão totalitários (e suas ficções de pureza racial) é um governo que dá preferência à pessoas de certa descendência? Porque não se deixa claro a natureza apartheid da própria idéia de uma israel para os judeus? Frente a isso, morar em NY, que é só um pedaço de chão, é realmente um paraiso humanista.
O filme tem seus deslizes ao tentar justificar tudo o que for possível para a obtenção e manutenção de um salva-guardo pros habitantes de israel (que inclusive nem querem saber como se fazem suas salsichas, como a mãe do protagonista), e isso é belamente ilustrado por uma vitrine de uma cozinha que o protagonista sempre olha quando na frança. Em um momento, um personagem diz: "um dia você pode ter uma dessas, mas é muito caro. Sempre custa caro ter um lar." Mas bem depois, ao reencontrar sua mulher vivendo em NY, o mossad elogia a decoração da casa, ao que ela responde: "a cozinha é grande demais".

Um comentário:

Piotr disse...

não vi o filme mas gostei da sua análise...porém,achei que está um pouco mal escrito comparado com seus textos anteriores.