segunda-feira

Neuras 2.3

Esse formato aforismático tem desvantagens que casam com a minha preguiça direitinho, por isso, sem mais refinamentos, o porquê do cerebro não ser A resposta pra nossa atual ignorância sobre o que é a mente.
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Comecemos de ladinho.
Suponha que um economista queira entender a economia de um país. Ora, economia é só um nome que damos a uma abstração composta de N agentes trocando coisas por coisas. Essas coisas podem ser coisas físicas mesmo, podem ser idéias, podem ser o meu trabalho por um determinado tempo, etc. Nas economias modernas, no entanto, consolidou-se o meio de troca de coisas conhecido por dinheiro. Quase tudo o que hoje se chama de economia acontece envolvendo dinheiro, e tudo o que envolve dinheiro é chamado de economia. As coisas inclusive são reconhecidas só em função de quanto dinheiro elas valem (na economia), e por isso não é um exagero dizer que a economia pode ser vista como a circulação de dinheiro entre agentes. Entender as propriedades (físicas) do dinheiro (moeda, papel, cheque, etc) é sem dúvida interessante e complementar pra se entender a economia. Mas a não ser que se tenha um esquema pra tentar encaixar toda aquela circulação de dinheiros, saber que na nota de R$ 50 tem uma onça, ou entender como se desenha uma marca d´água, não esclarece nada.
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Um livro trás os mesmos problemas. As propriedades físicas do papel, o conhecimento exato da fonte usada nas letras, saber exatamente onde começa um capítulo, ser capaz de criar até mesmo um índice remessivo, etc, não adianta nada se você não sabe traduzir em que língua está escrito o texto. Os carácteres escritos no livro são pistas interessantes, afinal, um livro que tenha uma diversidade muito maior de caracteres deve estar escrito em uma lingua com mais fonemas (mas a lingua escrita com menos caracteres pode simplesmente estar escondendo regras combinatórias como lh, nh, th, em exemplos familiares). Podemos até estabelecer correlações estatísticas super-interessantes, como inventar dois conjuntos -e chama-lo de vogais e consoantes- e dizer que eles geralmente se alternam (aposto que isso tem uma correlação estatística, ehehe). O que isso ajudou a entender o texto? Nada. Sem um dicionário e uma gramática não temos como saber o que o livro diz.
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Imagine agora que você tenha um problema no seu computador e queira checar a compatibilidade das suas placas novas (que acabou de instalar no gabinete) com um monte de softwares que você queria instalar tinha tempo. Detalhe: seu monitor não funciona, você vai ter que fazer isso só medindo a carga elétrica de cada transístor.
Tudo bem, um exemplo menos impossível. Imagine querer entender como funciona um jogo complexo, como o World of Warcraft (com seus 12 milhões de usuários oficiais), só que só tendo acesso aos roteadores dos provedores e usuários. Tudo bem, quer um desconto? As vezes tu pode escolher um output de um jogador e filmar em tempo real com a atividade de algum roteador, pode até digitar os comandos que quiser no teclado e mouse desse jogador. Boa sorte em tentar entender como funciona o jogo: quais suas regras (como o programa transforma input em output, qual o formato de seu banco de dados, etc, algo como o código fonte), quais os objetivos do jogo, o porque das pessoas jogarem, etc.
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Todos esses problemas são análogos à relação mente-cérebro. Não me entenda errado: a mente não é nada além do cérebro. Não acredito em dualismos, emergentismos ou epifenomenalismos, muito menos em behaviorismos. O problema é saber qual a configuração computacional que chamamos de mente.

4 comentários:

FabioV disse...

Cara, é uma pergunta ignorante e honesta: me diz a diferença entre monismo, emergentismo e epifenomenalismo?

Eu já li um bocado sobre isso, e sinceramente não consigo distinguir com clareza uma definição da outra.
No mais, acho que a analogia do computador/wow foi a mais apropriada. Mas... nenhum dos dois foi criado através da seleção natural. Nenhum dos dois é adaptativo (apesar d vc poder argumentar q uma interface user-friendly é de certo modo adaptativa), nenhum deles tem regras contingentes em diferentes modelos (espécies) que podem ser analisados como diferentes níveis de complexidade para uma resposta a demandas evolutivas semelhantes. Deixa eu ler o outro agora.

the author disse...

Sabia que ninguém clicava nos links... beleza, resumo fast-food: monismo (pra fins dessa discussão)é a idéia de que o mundo é feito da mesma coisa, de que não existem "tipos" de mundo se sobrepondo (como físico e mental, por exemplo), ambos materialistas (só existe a realidade física) e idealistas (tipo platão) são monistas. Emergentismo é a idéia de que a mente "emerge" do cérebro por causa da complexidade que ele adquiriu, do mesmo jeito que tem gente que acha que um dia as máquinas vão se rebelar só porque os computadores ficaram complexos demais (de acordo com essa idéia, você não precisa de um programa pra ensinar as máquinas -ou pessoas- coisas como consciencia, isso seria um brinde da capacidade computacional da mente). Epifenomenalismo diz que a mente não passa de um subproduto do cérebro sem capacidade causal no mundo, existiria só de enfeite.

FabioV disse...

O que vc chamou de emergentismo aqui parece mais com o materialismo funcionalista do Dennet. A analogia até parece com as que ele usa.
e o epifenomenalismo da Carol Churchland é um bocado diferente deste, pois tem capacidade causal, e é citado por uns caras como o Gazzaniga, e num é tão ultrapassado e sonhador assim...
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Acho que a verdade é que misturar filósofos, psicólogos e toda a laia das neurociências pra discutir a mente acabou gerando vários conceitos que podem querer dizer tudo e nada ao mesmo tempo. Povo prolixo do caralho.

the author disse...

Dennett na verdade reconhece a necessidade de rotinas específicas pra gerar outputs específicos (afinal de contas, o computador mais complexo do mundo que só seja programado pra jogar xadrez não vai fazer nada além de jogar xadrez), o que é o exato oposto do emergentismo, a idéia de que o reducionismo explica a mente. Não consegui encontrar referências da Carol Churchland, mas se a mente possui papel causal no mundo físico, então já fica estranho chamar de epifenomenalismo. Nenhuma dessas coisas é "ultrapassada" no sentido de que não existem evidências suficientes pra desprovar nenhuma das alternativas, e tem gente que defende coisas piores ainda, hehe. De resto, concordo contigo, confusões terminológicas são um inferno, e é por isso que é preciso rigor linguístico (pra uma referência de filósofo preocupado com isso, veja Fodor em In Critical Condition, MIT Press, 1998 -tem na biblioteca da unb).