domingo

os outros

-O negócio é que depois que você perde alguém a segunda coisa que todo mundo fala é que a sua vida não precisa terminar também, que é preciso seguir em frente, que uma hora aparece alguém especial. Logo depois essas mesmas pessoas começam a te olhar feio quando te veem acompanhado. Eu posso ser velho mas não sou idiota, eu percebo. Me olham como se eu devesse alguma coisa pra alguém, como se eu tivesse escolha. Eu não escolhi começar a gostar de outra mulher agora, eu não escolhi que o câncer ganhasse depois de dois anos de hospital. O que eu escolhi foi não me esconder no escuro, escolhi não apressar minha própria morte. Eu sei como essas coisas funcionam, trinta anos casado, sem filhos, aposentado: estatisticamente eu sou um homem morto. Eu vejo isso com meus próprios olhos, já tem tempo que todo mês tem velório de conhecidos, as vezes não dá nem pra ir em todos porque as datas coincidem. Você acha engraçado? Se quiser rir de verdade você devia era ver as caras das velhas quando entendem que a minha morena não é neta nem filha nem enfermeira. Primeiro é a surpresa, depois a inveja, e finalmente o desprezo. Um desprezo rancoroso, silencioso, com o canto da boca, com as rugas da testa, o pescoço franzido. Não me dá raiva nem pena, mas eu sinto vontade de ir embora, de ir gastar meu (pouco) tempo em outro lugar. Não é como era no hospital. Lá (eu) tinha muito mais vontade de fugir, mas não queria ir sozinho, queria que ela fugisse comigo, deixasse os tubos, os fios, os médicos, os lençóis. Queria que ela viesse pra casa pra vida continuar como sempre. Agora eu sei que tudo pode acabar a qualquer dia, mas não me incomodo com isso. Me incomoda passar o pouco que me resta olhando tubos, médicos, e esses rostos envelhecidos e pequenos, e fico feliz quando penso que não vou. A melhor coisa que pode acontecer na vida de um velho sozinho é uma morena, mesmo se ela aparecer depois de duas semanas do enterro da sua mulher.