terça-feira

o estrangeiro

antes de vir pra cá li o estrangeiro, do Camus. não gostei. achei uma pusta propaganda cristã, afinal de contas, se a vida de alguém sem valores metafísicos era aquilo, eu prefiro acreditar em deus. a grande pilantragem do livro, que é tentar te fazer simpatizar com o protagonista a despeito dele ter matado o pobre árabe sem motivo algum, é revoltante. o livro pode até ser lido como uma pegadinha, na qual se você for esperto vai ficar constantemente escandalizado pelo narrador, que parece não lembrar que o coitado do árabe morreu por nada.
mais do que nenhum valor religioso, o estrangeiro não tem nenhuma relação com ninguém. a única relação automática que se tem nessa vida é a primeira coisa que acaba no livro: sua mãe, já idosa, morre, e o protagonista não fica muito abalado. claro, é uma pena que ela morreu, mas já era velha, e afinal, todo mundo morre alguma hora. a importância que o estrangeiro dá a morte de sua mãe mais tarde vai lhe custar a vida, martirizado pela sua indiferença e teimosia em ser honesto.
Camus quer dar uma lição de moral, mostrar que os que não se inserem no jogo de mentiras e convenções sociais acabam sendo eliminados pelo sistema. mas não convence. a ausência de propósito que o protagonista vê em tudo curiosamente nunca avança sobre sua própria teimosia em ser sincero. ele não consegue responder à pergunta que aparentemente lhe condena: por que não? claro, por que não não se importar com a morte de mamãe? e por que não fingir que me importo pra continuar livre? se antes da prisão pode-se falar que o protagonista era indiferente a prisão, rapidamente o autor é sóbrio o suficiente pra pelo menos lhe inserir um pouco de desgosto pela cárcere.
o solipcismo egoísta parece ser a única alternativa ao jogo de mentiras da sociedade, e o autor só consegue forjar essa idéia inventando um personagem imune aos outros, armado de uma indiferença que não se limita só às convenções sociais, mas a própria idéia de que o outro é um igual, é merecedor do que o si mesmo gostaria de ter-poder (olha que chique isso, quase uma lacanagem). se a igualdade é uma idéia cristã, abrir mão dela em função de uma crítica moral é jogar o bebê fora junto com a água do banho.
por outro lado, agora que eu sou o estrangeiro (inclusive contando com um enorme estoque de árabes -e poloneses, e espanhóis, e indianos, e irlandeses, infinitos outros- pra matar) não acho a situação tão surreal assim. uma vez que um adulto (cheio de defesas pra se relacionar, que uma criança não teve tempo de apodrecer ainda) é jogado no estrangeiro, os valores e certezas morais dão trabalho de se manter. a indiferença é fácil, porque a certeza da reciprocidade é enorme, é um exercício inútil fantasiar que os outros na rua te acham igual, te acham digno, não te matariam porque estavam com calor e um 38 no bolso.
a diferença entre o estrangeiro real e o protagonista do livro é que a indiferença ao outro é uma projeção (na melhor das hipóteses), ou uma reação (à indiferença real dos outros, um mecanismo de defesa -muitas vezes não só defesa psíquica). desconfio até que seja facilmente remediável. alguns lugares te fazem sentir menos estrangeiro do que outros, e não é preciso muito pra isso. com certeza muito menos do que a teia de falsidades e hipocrisias que Camus tenta criticar.

2 comentários:

nefisto disse...

recentemente estava pensando sobre a indiferença e como ela acaba sendo inutil, preguiçosa, conveniente e até covarde, enquanto uma pessoa precisa se esforçar e se arriscar para expressar que não concorda, que odeia ou como vai mudar a opinião dos outros (o contrario tbm). fora em caso de auto-preservação, como conversando com a policia por exemplo.
legal aprender palavras novas, solipcismo pareceu um sinonimo para "minhas ideias antes da realidade" eheh

Unknown disse...

gostei da sua crítica. sobre ser estrangeiro, desconfio que seja possível quebrar algumas barreiras, da indiferença, por exemplo. mas requer disposição narcísica e paciência. Bom, no final das contas, é melhor insistir um pouco (de maneira inteligente, claro), do que ficar só e melancólico.